(Capa: Pedro Inoue) |
A VEGETARIANA
Tema: Violência, Tabus, Rebelião, Erotismo
A Vegetariana é um romance peculiar e perturbador que narra a história de Yeonghye, uma mulher comum que, pela simples decisão de parar de comer carne, transforma a sua vida e a de seus familiares em um grande pesadelo transgressivo. Essa segunda edição¹ brasileira foi publicada em 2018, pela Editora Todavia, e traduzida por Jae Hyung Woo.
É
importante frisar que, embora o título possa sugerir que o livro trata de
vegetarianismo, a obra não se prende às escolhas alimentares, mas, como a
própria autora afirmou em várias entrevistas, aborda as contradições humanas e
a luta pela dignidade.²
Nunca tinha me ocorrido que minha esposa era uma pessoa especial até ela adotar o estilo de vida vegetariano. (2018, p. 9)
A obra, dividido
em três partes, a primeira delas nomeada ‘A vegetariana’, é narrada pelo marido
de Yeonghye. Ele descreve a mudança repentina nos hábitos alimentares da
esposa, que, atormentada por sonhos com carne crua, decide abandonar o consumo
de qualquer produto de origem animal. E, não só, ela também começa a evitar o
marido, para fugir do cheiro de carne que, como ela diz, exalava de seus poros.
De
início, o marido demonstra total desdenho em relação aos sonhos que levaram sua
esposa a agir daquela maneira. Além de expressar desconforto com o fato de ela
não gostar de usar sutiã, ele reduz todas as atitudes dela a meras
manifestações de loucura. Sua maior inquietação, contudo, era não reconhecer
mais a mulher com quem se casara. Para ele, perder a visão simplista e machista
do que considerava ser a "esposa ideal" — trocando-a pela perspectiva
da suposta insanidade — era simplesmente intolerável.
Acabei me casando porque ela não tinha nenhum charme especial, e também por não ter notado defeitos muito gritantes. Uma personalidade dessas, sem frescor, brilhantismo ou refinamento, me deixava confortável. (2018, p.9)
Yeonghye,
quase sempre silenciosa, exceto quando descreve seus sonhos de forma
introspectiva, nunca se declarou vegetariana. Esse rótulo lhe é atribuído por
aqueles ao seu redor, principalmente pela família. Mas, ao contrário de quem
adota a dieta vegetariana por motivos alimentares, religiosos ou ideológicos, a
decisão de excluir a carne de suas refeições surge exclusivamente das
manifestações de seu inconsciente – um reflexo íntimo e intransferível dos
próprios sonhos.
Foi tudo tão real. A sensação de mastigar carne crua, o meu rosto, o brilho dos meus olhos. Parecia o de alguém que conheci pela primeira vez, mas com certeza era meu rosto. Quero dizer, pelo contrário, parecia tê-lo visto tantas vezes, mas não era meu rosto. Difícil explicar. Era familiar e desconhecido ao mesmo tempo... Essa sensação real e esquisita, terrivelmente estranha. (2018, p.17)
O trecho
em que ela diz “Era familiar e desconhecido ao mesmo tempo...” nos lembra
fortemente o conceito de “o estranho” de Freud, em Das Unheimlich (“O
Estranho” ou “O Inquietante”). Freud argumenta que o que nos causa desconforto
e medo não é necessariamente o novo ou desconhecido, mas sim algo que, em algum
momento, foi familiar. Quando o que é familiar aparece de forma inesperada,
como o reflexo dos próprios olhos que ela vê, gera a sensação de
estranheza, pois, embora ela se veja refletida, não consegue se reconhecer.
A
segunda parte do livro, ‘A mancha mongólica’, é narrada pelo cunhado, um
artista plástico casado com a irmã mais velha de Yeonghye. Ele fica obcecado ao
descobrir que a cunhada ainda possui uma mancha mongólica em seu corpo, característica
dos recém-nascidos. Essa descoberta desperta nele uma atração sexual e ele começa
a explorar a crescente vulnerabilidade de Yeonghye para satisfazer seus
próprios desejos.
Nessa
passagem, percebemos que a protagonista adota comportamentos que expressam seu
desejo de se distanciar da própria humanidade, transformando-se em algo
radicalmente diferente de quem sempre foi. O cunhado, de forma cruel e
manipuladora, explora essa busca por mudança ao oferecer, através da arte
erótica, a metamorfose que ela tanto deseja. Ao pintar flores no corpo nu de
Yeonghye, ela se coisifica como planta, identificando-se com as raízes
vegetais da terra e com o processo de fotossíntese — uma transformação
carregada de ares kafkianos.
Olhou para seu traseiro contendo a respiração. Sobre as duas colinas macias, havia duas covinhas, chamadas "sorriso de anjo". De fato, a mancha do tamanho de um polegar estava mesmo estampada na parte de cima da nádega esquerda. Como ainda podia estar ali? Ele não conseguia compreender. Parecia uma mancha de machucado, levemente esverdeada. Mas se tratava mesmo da mancha mongólica, não havia dúvidas. Era algo que remetia a tempos remotos, anteriores à evolução ou ao processo de fotossíntese. Ele percebeu que, inesperadamente, aquilo não tinha nada de erótico; estava mais para algo relativo ao vegetal. (2018, p.80-81)
Por fim, em ‘Árvores em Chamas’, narrada sob a perspectiva de Inhye, testemunhamos sua identificação emocional com o estado mental da irmã mais nova, que parou de comer carne. Mais uma vez compreendemos que essa decisão transcede uma simples questão alimentar, pois trata-se de uma forma silenciosa de resistência à repressão social.
Por meio dos relatos pessoais de Inhye, o texto sugere críticas incisivas sobre o papel das mulheres, especialmente aquelas casadas, que são frequentemente reduzidas a figuras multifuncionais, obrigadas a desempenhar simultaneamente os papéis de esposas, mães e responsáveis pelo lar, em um ciclo que anula sua própria individualidade e desejos.
Inhye,
ao contrário da irmã, só mantém o controle devido ao forte senso de
responsabilidade com o filho e a rotina que a cerca. No entanto, por dentro, também
já se sentia morta. Para Inhye, a morte não representa uma ruptura
desconhecida, mas algo profundamente íntimo — uma presença constante e
silenciosa que se tornou parte de sua vida interior, provocando a inquietude de
quem reconhece o vazio dentro de si mesma.
Assim,
pouco a pouco, Yeonghye começa a existir em um estado quase vegetativo,
assemelhando-se às árvores. Ela fica indiferente às normas sociais e, decidida
a seguir suas próprias escolhas, ela passa a abster-se de qualquer alimento, interação
humana e até das necessidades básicas do corpo. Sua preferência pela letargia e
pela resistência silenciosa se transforma em um gesto de autodestruição e, ao
mesmo tempo, em um desejo de transcendência, onde raízes imaginárias parecem
oferecer mais liberdade do que as amarras da vida humana e seus papéis
aprisionantes.
(Han Kang) |
Han Kang, natural de Gwangju, na Coreia do Sul, começou sua carreira em 1993 como poeta, mas desde então passou a se dedicar principalmente à escrita de romances e contos. Em sua obra, ela aborda traumas históricos e sistemas invisíveis de regras, expondo, em cada um de seus textos, a fragilidade da vida humana. Sua percepção única das relações entre corpo e alma, vivos e mortos, e seu estilo poético e experimental, a tornaram uma inovadora na prosa contemporânea. Entre suas obras estão A Vegetariana, Atos Humanos e O Livro Branco.
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